Texto por: Carlos Alberto Francinelli Junior.
O fenômeno dos massacres chegou ao Brasil. Aqui, um de seus nichos mais perversos se estabeleceu como carro-chefe: os massacres escolares. Por conta de seu alto impacto na sociedade, esta variedade de atrocidade se impôs sobre as demais e, como era de se esperar, a grande mídia impulsionou tal fenômeno com a mesma ignorância de uma criança que coloca os dedos na tomada para ver o que acontece. Pois bem, aconteceu de novo.
Meu objetivo aqui não é reforçar este tipo de comportamento vil, portanto não me interessam seus autores e circunstâncias. Me interessa o fato de que a saúde mental está começando a ser encarada com a seriedade que merece, especialmente no âmbito escolar. Uma pena que, como acontece de praxe em nosso país, primeiro criamos o problema para só então, em um segundo momento e após o sofrimento, procurarmos a solução.
Prova disso é que foi aprovada em 2019 a Lei nº 13.935 – que dispõe sobre a prestação de serviços de Psicologia e de Serviço Social nas redes públicas de educação básica – mais de 21 anos depois de sua idealização! Imagine agora se, em 1998, esta lei fosse aprovada e tivéssemos psicólogos e assistentes sociais nas escolas, reforçando práticas de saúde mental no ambiente escolar, promovendo ações de respeito à diversidade e de combate aos preconceitos, engajando as famílias para a importância do acompanhamento educacional de seus filhos, identificando os problemas sociais pertinentes à época e trabalhando para evitar que tomassem maiores proporções. Talvez as coisas tivessem tomado um rumo diferente, mas devido à incompetência e a negligência de muitos, nunca saberemos.
O que temos certeza é que estava “tudo bem” enquanto o fenômeno se mantinha apenas em território estadunidense. Afinal, temos os nossos próprios problemas para resolver, não é? Qual o motivo de nos preocuparmos com algo que sequer aconteceu por aqui? Se aconteceu, foi uma, duas vezes, casos isolados. E outra, a gente não costuma importar nada da cultura norte-americana, portanto, não há com o que se preocupar, faça um post, dê um like, tome uma Coca Cola e relaxe.
Ironias a parte, acredite, esta foi a “lógica da negligência” de nosso congresso e de nossos governantes durante longos 21 anos. Não se trata da mesma lógica que nos mostra que não precisamos adquirir um câncer de pele se podemos preveni-lo com o uso adequado do protetor solar, ou que precisamos identificar o número máximo de pessoas que cabem em um estabelecimento comercial, limitando seu acesso, em função do risco de desastres oriundos ou reforçados pela falta de estrutura ou pela imprudência humana. O uso correto do protetor solar e a identificação e limitação do número de pessoas nos espaços não significam a impossibilidade da ocorrência do câncer de pele ou de tragédias como a da Boate Kiss, mas reduzem consideravelmente as probabilidades destas se concretizarem.
Fato é que não aprendemos a lição e seguimos apanhando, como o filho criado a base de punição física. Após a surra, sofremos e emudecemos, até que nos esquecemos do ocorrido, reincidimos no erro e levamos uma surra maior ainda, estabelecendo assim um eterno ciclo de sofrimento que não pode ser solucionado se não pelo aprendizado. E para este ter início, ações precisam ser tomadas.
Somente após nove ataques escolares em apenas oito meses é que corporações como a Rede Globo decidiram modificar sua forma de abordagem jornalística dos eventos, agora não informando os nomes dos autores ou das vítimas. Sim, foram precisos nove ataques para se concluir o óbvio! Como diz o ditado: antes tarde do que mais tarde.
A produção de séries sobre a vida do criminoso americano Jack Dahmer ou sobre a trajetória da ex-detenta Susane Von Richthofen também contribuem com fenômenos afins, nos quais é notória a busca de seus autores por fama e reconhecimento, mesmo que isso lhes custe a vida. Nessas séries, o personagem principal, por mais controverso que seja, é romantizado ao extremo, relativizando seus atos e reforçando copiadores de plantão. É de urgência que haja, ao menos no Brasil, regulação sobre este tipo de conteúdo.
Por fim, onde estão os heróis? Ao procurar nas plataformas de streaming, não encontrei o filme sobre a vida de Heley de Abreu Silva Batista, professora de uma creche em Janaúba (MG), que sacrificou a sua vida para salvar 25 crianças de um incêndio criminoso em seu local de trabalho. Também não encontrei o filme sobre a trajetória da vendedora Leiliane Rafael da Silva que, em 2019, salvou um caminhoneiro cujo veículo fora atingido pelo helicóptero em que estava o saudoso jornalista Ricardo Boechat. Juro que procurei, mas também não achei em lugar nenhum a série sobre o feito de Ricardo Oliveira Galvão Pinheiro, ajudante de carga e descarga em São Paulo. Em 2018, o prédio em que Ricardo residia desabou após um grande incêndio e, mesmo estando em princípio fora de perigo, ele se propôs a auxiliar os bombeiros na busca por sobreviventes e salvou 4 crianças que estavam dentro do edifício em chamas. Ao retornar para resgatar mais vítimas, o edifício ruiu e ele não sobreviveu.
Após esta breve análise, fica a pergunta: a quais exemplos estamos realmente valorizando? Se não nos conscientizarmos e pararmos com este ciclo de sofrimento o quanto antes, não sobrará ninguém para contar as histórias dos verdadeiros heróis, que são estes supracitados com nome e sobrenome, e que possuem a gratidão de muitos, inclusive a minha, por terem o coração e a coragem para fazer o que precisava ser feito. Que seus nomes sejam lembrados e suas histórias possam ser compartilhadas cada vez mais, pois precisamos, hoje mais do que nunca, de mais Heleys, Leilianes e Ricardos.
Sobre o autor: Carlos é psicólogo de formação, especialista em Política e Sociedade, Docência no Ensino Superior, Neuropsicologia e Análise do Comportamento. Atua profissionalmente como psicólogo na Prefeitura Municipal de Maricá (RJ) nas redes de Assistência Social e Educação e exerce as funções de Coordenador do Comitê de Educação e Cultura e de Diretor de Projetos do IEPC – Instituto de Educação, Política e Cidadania. Instagram: @carlos.francinelli