Texto por: Carlos Alberto Francinelli Junior.
É de conhecimento de quem exercita a reflexão crítica que o caráter, conjunto de características de como um sujeito se comporta, não possui relação causal com aspectos econômicos, sociais ou religiosos e, em suma, não está estampado “na cara” de ninguém. Contudo, mesmo que isso não seja segredo há séculos, por que ainda insistimos em correlacionar o caráter com status, dinheiro ou profissão?
Correlações não faltam. Quando uma pessoa se diz médico, advogado ou engenheiro, automaticamente tudo que sai de sua boca, mesmo que seja uma grande bobagem, possui maior probabilidade de ser compreendido como algo razoável, afinal de contas, são as palavras de um “doutor”. Essa ideia de que a profissão confere uma credibilidade inquestionável é muito problemática, pois, de fato, é necessário que nos deixemos reger pelo princípio da confiança e que acreditemos que, no que diz respeito às questões da medicina, o médico é a pessoa mais indicada para opinar; todavia, a coisa para por aí, ou pelo menos deveria parar.
Podemos observar que a profissão, por exemplo, confere um grau de confiabilidade ao que é dito que vai muito além do escopo que abrange a função laboral exercida. E, como se não bastasse, esse tipo de entendimento rudimentar dá margem para que canalhas se aproveitem de suas posições para darem as famosas “carteiradas” – comportamento de justificar suas ações ilegais através de uma suposta credibilidade conferida à sua pessoa por sua profissão, status, condição econômica ou cargo que ocupa, geralmente iniciada com a frase: “você sabe com quem está falando?”.
No psicológico afetado destes sujeitos, é quase como se, por serem indivíduos supostamente prestigiados, estes pertencessem a uma casta distinta, e pudessem responder a uma constituição própria, não devendo ter suas ações submetidas às mesmas leis as quais o cidadão comum responde. São pessoas que vivem na idade média, que permitem que seus preconceitos e sua arrogância se proliferem em torno do que creem ter alcançado por mérito deles e apenas deles, como se o outro, no sentido amplo, fosse apenasum mal necessário.
Essa percepção de que o caráter de uma pessoa, ou seja, de que sua bondade, índole ou honra, possui qualquer ligação com o que a mesma faz, é solo fértil para todos os tipos de abobrinhas mentais. Isso tanto é concreto em nossa sociedade que quando um padre age de forma ilegal, nos chocamos por ser um padre que o fez, como se a batina conferisse de forma prática e automática ao sujeito um caráter irretocável, de moral inquestionável.
A partir de um olhar superficial, a expectativa que temos em função da posição social de um sacerdote nos faz crer que é uma pessoa correta e justa, mas não necessariamente o é, pois esta não é uma relação causal. O mesmo acontece com notícias envolvendo médicos que abusam de pacientes, empresários corruptos, pessoas abastadas com sobrenomes conhecidos que sonegam impostos, e pessoas públicas em geral que cometem desde erros simples a atrocidades e, por serem públicas, suas ações chocam a todos, pois “dele ou dela eu nunca esperaria isso”.
É preciso fazer uma menção especial quanto a classe dos políticos. Independentemente da função e da esfera de atuação. Por conta de seu histórico, esta classe está bastante desgastada com a opinião pública. Qualquer pessoa sensata não confia a priori no que um político afirma, seja este quem for. O problema é que, ainda com todo este desgaste, existe uma massa que sustenta o sebastianismo nosso de cada dia; massa essa conhecida nos dias atuais carinhosamente como “gado”, o que entendo se tratar de uma grande ofensa aos bovinos.
Infelizmente o acesso a uma boa educação também não possui relação causal com o caráter de uma pessoa. Existem criminosos e canalhas que estudaram nas melhores escolas, nas melhores universidades e, ainda assim, são quem são, canalhas. Honestidade não se compra e não se vende, se pratica sem esperança de qualquer retorno, pois essa é a graça da coisa, como aponta o professor Clóvis de Barros Filho em Shinsetsu, o Poder da Gentileza: “a graça da moral é fazer o que é certo mesmo que ninguém esteja vendo, nenhuma câmera esteja filmando e não haja a mínima possibilidade de que sua ação seja avaliada, reconhecida ou recompensada pelo outro”.
Desta forma, faz-se necessária a reflexão. Talvez devêssemos esperar menos das pessoas como um todo, pois quanto maior a expectativa, maior a decepção. Talvez devêssemos conferir a credibilidade aos profissionais no que diz respeito à sua área de atuação e apenas, mas não esperar que estes tenham caráter irretocável só por exercerem determinada função. Talvez devêssemos tentar equilibrar a régua de nossos próprios julgamentos e entender que têm muita gente anônima e pobre que é muito mais honesta do que muito rico e famoso, e que têm muito ateu, varredor de rua e empregada doméstica com mais caráter do que religiosos, juízes, engenheiros, desembargadores, psicólogos, médicos e afins.
A verdadeira essência de uma pessoa aparece justamente quando a despimos de tudo que ela supostamente é, sabe ou possui, e com o tempo e a convivência, esta essência se revela aos poucos, gradativamente, como o abrir das cortinas de um palco. Portanto, está na hora, como sociedade, de pararmos com este endeusamento para com determinadas funções e posições sociais para que, como consequência, os canalhas de plantão não se sintam tão à vontade para transgredir as leis e achar que podem tudo. A mudança cultural de um país começa por tratar o motoboy tão bem quanto tratamos o delegado, bem como exercer sobre ambos a mesma expectativa em relação a seu caráter.
Sobre o autor: Carlos é psicólogo de formação, especialista em Política e Sociedade, Docência no Ensino Superior, Neuropsicologia e Análise do Comportamento. Atua profissionalmente como psicólogo na Prefeitura Municipal de Maricá (RJ) nas redes de Assistência Social e Educação e exerce as funções de Coordenador do Comitê de Educação e Cultura e de Diretor de Projetos do IEPC – Instituto de Educação, Política e Cidadania. Instagram: @carlos.francinelli
Boa noite, participei da palestra hoje pelo Youtube e gostei muito. Parabéns, o mundo precisa de projetos como o de vocês.