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O QUE A PREMISSA DE UM PASSADO CLÁSSICO SEM A CONTRIBUIÇÃO DE AFRICANOS TEM A DIZER SOBRE A LÓGICA DO RACISMO

Texto por: Lucimar Felisberto dos Santos.

    Para entender as relações étnico-raciais na Antiguidade, o historiador Rogério José de Souza adentrou as experiências e práticas dos agentes do mundo grego. Para desenvolver uma investigação sobre o assunto, apresentou um projeto de pesquisa ao Programa de Pós-Graduação em História Comparada da UFRJ. A proposta era analisar  traduções da Tragédia de Édipo. Questionar o desvio de sentido e significado de um fragmento que expressa a característica fenotípica do herói grego na transcrição da obra para os idiomas espanhol, inglês e francês. Ao longo da pesquisa, reorientou o fio de condução da análise ao perceber a possibilidade de interrogar a neutralidade da produção científica.

    O fragmento mencionado refere-se à descrição dada por Jocasta da aparência de Laios, seu marido falecido e pai de Édipo. Entre outras características fenotípicas, a personagem mitológica destaca o termo ‘mélas’ para indicar sua aparência negroide. Em um padrão que se tornou comum aos diversos tradutores de língua portuguesa, a passagem vem sendo ocultada, suprimida ou substituída por mégas (grande). Segundo argumenta Rogério, a reiteração pode indicar a tentativa de se preservar as imagens gregas clássicas do senso comum popular e acadêmico. O que pode ser interpretado, fundamentalmente, como uma “orientação teórico-metodológica oculta” que ele identifica com racialismo, por ser imbuída da premissa de um passado clássico sem a contribuição de africanos.

   Tal lógica que pode ser denominada racista deixa evidente que para aqueles que se debruçaram na formulação do ideal homem grego (literatos, historiadores, psicanalistas, etc.) seria inaceitável que um dos mitos fundadores da cultura ocidental fosse de origem africana. Assim, Sófocles, o escritor da tragédia e um dos mais importantes dramaturgos gregos só poderia estar “enganado”, necessitando sua obra da devida “correção” feita pelos tradutores.

   A pesquisa integra o campo de estudos de “revisão” das interpretações de matriz europeia. Rogério argumenta que tal procedimento vem sendo necessário por conta de elas evidenciarem racialização e hierarquização dos diferentes grupos humanos, “tanto explicitamente, quanto implicitamente”, impedindo a ampliação de estudos dos povos africanos ao período que antecede a chegada dos europeus ao “continente negro”. Vale anotar que essa tendência contribui para a construção de uma historiografia das relações raciais no período que antecede esse evento, na chave classicismo e etnicidade. Problematizando o lugar social do cientista ocidental a tendência promove, portanto, um reexame das “representações eurocentristas construídas em nossa sociedade, levando-se em conta o seu papel na reprodução social dos grupos historicamente estabelecidos”.

    Em matéria do site Geledés, publicado em 21 de janeiro de 2016, já se tinha chamado a atenção para o fato de o senegalês Cheikh Anta Diop (formado em Física, Filosofia, Química, Linguística, Economia, Sociologia, História, Egiptologia, Antropologia) ter derrubado o argumento do racismo científico ao demonstrar que o Egito antigo era uma civilização negra. Ele é uma das referências utilizado na dissertação de Rogério J. Souza. Comprovou, por exemplo, que a cultura egípcia era africana na linguística. Hoje sabemos que toda a humanidade é descendente do continente africano, incluso os egípcios, que somente o racismo dos egiptólogos respondia pela tentativa de se excluir essa possibilidade; que a teoria monogenética e africana da humanidade, sustentadas em descobertas arqueológicas realizadas ao longo do século XX, em sua maioria, apontaram a África como o berço da humanidade.

    Em suas pesquisas, Diop sustentou o argumento teórico da existência de dois berços de desenvolvimento da humanidade. Assim, evidenciou o desenvolvimento de duas diferentes unidades culturais distintas. Em um polo está o berço setentrional e a Europa, sua herdeira direta; no outro está o berço meridional, antepassado da África. O historiador e antropólogo senegalês destaca que as diferenças entre o Norte e o Sul iam além da estrutura familiar (patriarcado versus matriarcado). Elas se manifestavam e se movimentavam igualmente na organização de seus respectivos Estados, na concepção de realezas e nos sistemas filosóficos e morais. É com essa perspectiva dual que inclui a humanidade como um todo no processo histórico.

   Considerado um filósofo da História, as ideias historiográficas e políticas de Ckeikh Anta Diop foram também objeto de pesquisa de Jorge Henrique de Jesus, sobre o despertar da África. Para ele e outros estudiosos, por ter refletido sobre o sentido da História da humanidade, suas causas e seus efeitos, o senegalês contribuiu com a chamada Filosofia Crítica da História, igualmente chamada de Epistemologia ou Teoria da História. Reflexivamente, a principal contribuição dos estudos diopianos é a afirmação da historicidade da África em contraposição aos pressupostos a-históricos que guiavam os estudos etnológicos sobre o continente. De acordo com Jesus, “É interessante destacar que Friedrich Hegel, considerado o filósofo da História por excelência, é o mesmo que escreveu que “A África não é um continente histórico; ela não demonstra nem mudança nem desenvolvimento”, e que os povos negros “são incapazes de se desenvolver e de receber uma educação”.

    No processo de afirmação da historicidade da África, é inegável que introduzir conteúdo da História da África e da cultura afro-brasileira no currículo escolar para positivar a imagem de nos negros descendentes de povos africanos na sociedade brasileira, proposta da lei 10.639/03, é uma estratégia fundamental. Entretanto, para derrubar a imagem depreciativa da África como lugar de povos atrasados, fechados para a razão e fornecedor de carne humana desqualificada, faz-se necessário romper com uma certa filosofia da História e reorientar a estrutura teórico-metodológica de modo a se evidenciar as contribuições do complexo civilizacional que nela teve origem.

Referências bibliográficas:

JESUS, Jorge Henrique Almeida de. O Despertar da África: As ideias historiográficas e políticas de Cheikh Anta Diop. Monografia (Bacharelado e Licenciatura em História). Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2016.

NEGRO, Hebreu. Cheikh Anta Diop derrubou o racismo cientifico, ao provar que o Egito antigo era uma civilização negra. In: Revista Geledes, 21/01/2016. Disponível em: https://www.geledes.org.br/cheikh-anta-diop-derrubou-o-racismo-cientifico-ao-provar-que-o-egito-antigo-era-uma-civilizacao-negra – Acesso em 15/06/2020.

SOUZA, Rogério José de. Tragédia “Édipo Rei” de Sófocles. O que ela tem a nos dizer sobre relações raciais no campo da historiografia Clássica brasileira. Dissertação defendida no Programa de Pós-Graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2007.

*Coleção História Geral da África. São 8 volumes que cobrem desde a pré-história do continente africano até sua história recente.

Texto originalmente publicado na plataforma Afrodiálogos.

Sobre o autor: Lucimar é Graduada em História pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UFRJ), Mestra em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e Doutora em História Social do Brasil pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). É também Pesquisadora do Laboratório de História das Experiências Religiosas do Instituto de História (UFRJ) e do Grupo de Estudos de História da Educação Local (EHELO). Atua ainda como Dirigente do Movimento Negro Unificado; comunicadora social da Plataforma Educacional Afrodiálogos e Professora das redes municipais de ensino de Duque de Caxias e Magé.

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