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OS POVOS ORIGINÁRIOS EM LUTA PELO DIREITO DE TEREM DIREITOS

Texto por: Lucimar Felisberto dos Santos.

   Se pudermos estabelecer contraponto entre os estigmas a determinar o imaginário social popularmente disseminado sobre os povos afropindorâmicos chegaríamos à chave: violência versus passividade. Sabemos que muitos dos protocolos judiciários e policiais com os quais agora se reivindica mudanças foram construídos com procedimentos pautados no receio de que não fosse possível a manutenção de uma suposta ordem; na crença de que os africanos e seus descendentes pertenciam a uma “classe perigosa”. Do mesmo lado, mas em outra construção imagética, os povos originários (ou pindorâmicos) foram descritos como vítimas passivas do processo de dominação europeia.

    Em alguns discursos, para atender a específicas pautas da lógica capitalista, os indígenas foram apresentados como selvagens. Desconsiderado foi o sentido político da sua histórica luta para garantir os seus territórios, costumes e tradições. A literatura com esta tendência tradicional, entretanto, vem sendo revista. No que diz respeito ao lugar destes no pensamento social brasileiro, como analisa Tereza Almeida Cruz destacando o eurocentrismo epistêmico, a “visão está baseada em uma perspectiva evolucionista e colonialista que desconsidera outros modos de ser e viver para justificar a dominação como se os europeus fossem povos superiores”. Fundamentalmente, os estudos recentes como o desta autora vêm destacando o protagonismo dos povos indígenas, evidenciando-os como sujeitos históricos que sempre teceram estratégias de resistências e lutas em todos os momentos históricos.

    Outro desses estudos foi tema da MasterClass no perfil do Instagram da Afrodiálogos (26/06), quando receberam para um afrodiálogo a Dr. Ana Melo; sob o tema “O papel do Conselho Indigenista Missionário nos movimentos sociais responsáveis pelo processo que elevou os indígenas de tutelados a donos de sua própria história”. Dentre as sofisticações das estratégias indígenas, a historiadora convidada ressaltou uma articulação com o Conselho Indigenista Missionário (CIMI); destacou a mediada relação dos movimentos por eles organizados com o catolicismo missionário ressaltando, fundamentalmente, o sentido do histórico de resistência aos instrumentos de dominação que eram trazidos na bagagem dos padres.

       Segundo a pesquisadora, o CIMI foi criado em 23 de abril de 1972, no 3º Encontro de Estudos sobre a Pastoral Indígena promovido pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Cinco anos antes, havia sido fundada a Fundação Nacional do Índio e, no ano seguinte, publicado o Estatuto do Índio. Em verdade, o conselho era uma das respostas possível a uma conjuntura dos anos 1960, quando a ideia de que os indivíduos são dotados de direitos políticos, sociais, econômicos e culturais era disseminada. Ana Melo argumenta que “o reconhecimento dos direitos das mulheres, dos deficientes físicos, de grupos étnicos, entre outros, deu força argumentativa para reivindicações que exigiam a garantia desses direitos, através de movimentos sociais”. Defende que a perspectiva do argumento reorientou pontuais mudanças das práticas religiosas católicas nas aldeias indígenas, práticas que antes eram exclusivamente voltadas para a conversão daqueles que eram povos considerados “sem fé, sem lei e sem rei”.

     Ainda segundo a historiadora:
“A Igreja Católica iniciou com a atuação de alguns clérigos, principalmente na região amazônica (por sua localização fronteiriça e avanço do agronegócio), uma política missionária de denúncia, tornando-se porta-voz desses povos contra a política indigenista estatal”.

    Também o associativismo dos anos 1970 mobilizou os movimentos sociais indígenas no sentido de buscarem certa unificação na defesa de interesses coletivos. Quando, nesta conjuntura, a parte progressista da Igreja Católica cria o conselho, com 11 regionais constituídas por equipes volantes de bispos que periodicamente visitavam diversas aldeias, parece que as lideranças indígenas vislumbraram maiores possibilidades. Apesar de a instituição não abrir mão das missões e, partindo da ideia de promoção da justiça social e indo além da possibilidade de salvar almas, os religiosos vão dar continuidade a suas ações, mas agora alinhadas a demandas mobilizadas pela sociedade civil.

    Sobretudo buscando fomentar a interlocução entre indígenas e FUNAI, o CIMI cria, apoia e financia várias assembleias. Nelas eram reunidas diversas lideranças indígenas que, ao compartilharem suas experiências, na verdade, usavam a seu favor o aparato religioso.

  Consolidavam as oportunidades de buscarem um alargamento de sua cidadania inclusive reivindicando a mudança de status. Tutelados pelo Estado brasileiro, os povos indígenas exigiam a observância de seus costumes e organização social próprios. A unificação das diferentes lutas de diversos povos estabeleceria os parâmetros necessários para que se legitimasse um lugar de fala comum que ofereceria respostas próprias. A identidade indígena, generalizada para dar consistência ao movimento, favoreceu, por exemplos, a reivindicação do direito à demarcação de terras, ao fim do regime tutelar, ao respeito às diversidades culturais. Assim, atentos às possibilidades abertas pelo suporte do CIMI, as lideranças indígenas não deixaram de aproveitar o contexto de lutas políticas mais gerais que marcaria a década seguinte. Organizaram suas reivindicações no sentido de exigir o respeito à sua cidadania: como brasileiros e indígenas.

    No processo de aproximação entre o CIMI e os movimentos indígenas, a historiadora Ana Melo considera que, em um dado momento, uma tradição missionária de apoio à política estatal foi rompida publicamente e os religiosos passaram a trabalhar para ensinar os padrões não indígenas com o objetivo de que eles exercessem o seu direito de viver conforme sua cultura dentro de seus territórios. Assim, a via parlamentar de luta parece ter sido considerada por essas lideranças.

    É um fato histórico a eleição da primeira e única liderança indígena eleita deputado federal, pelo PDT do Rio de Janeiro em 1982. O combativo e questionador cacique xavante Mário Juruna manteve-se no Congresso Nacional até 1987, período marcado por embates acalorados e ataques sofridos por parte da mídia e de outros políticos, na tentativa de desmoralizá-lo. Mas, indubitavelmente, a sua representatividade foi fundamental para a construção do texto constitucional que seria aprovado no ano seguinte.

    A partir da Carta Constitucional de 1988, e em resultado daquela mobilização da sociedade civil que incluiu também os movimentos indígenas de lutas políticas por direitos civis, os povos originários deixaram de ser considerados “relativamente incapazes”. O texto da nossa Carta Constitucional consagra o direito indígena de manter terras, modo de vida e tradições. Os direitos dos “índios” estão expressos em capítulo específico (Título VIII, Da Ordem Social, Capítulo VIII, Dos Índios). Em tese, a legislação abandona a perspectiva assimilacionista, que os entendia como categoria social transitória, fadada ao desaparecimento, e passa a entendê-los como povos originários, reconhecendo, assim, que foram os primeiros ocupantes do Brasil. Pontualmente, o artigo 231 traz o seguinte registro:

“São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.

    Os povos originários ainda estão em luta pelo direito de terem direitos. Evidencia disso é que, de acordo com uma matéria publicada pelo Jornal A Folha de São Paulo em 04 de setembro de 2018, indígenas de diversas etnias reuniram-se para somarem forças para eleger pelo menos um representante para o Congresso que tomou pose em 2019. Com 8.491 votos foi eleita a primeira deputada indígena do País, Joênia Batista de Carvalho (Rede-RR), conhecida como Joênia Wapichana. Ainda preocupa a não participação política parlamentar das lideranças. Entretanto, de acordo com a matéria, o número de candidatos que se declarou naquelas eleições chegou a 130. Representavam 0,47% no universo de 27,5 mil nomes.

    Como resultado destas reivindicações e em reconhecimento da necessidade de se garantir direitos aos povos originários, em 2020, o presidente Luís Inácio Lula da Silva indicou a líder indígena e eleita deputada federal Sonia Guajajara. A luta continua, precisamos com eles formar fileiras. Tudo leva a crer que foi a possibilidade da construção de um projeto político que garantisse uma plataforma de onde emergiria uma voz que desse legitimidade às demandas do movimento que foi criada a chamada Frente Parlamentar Indígena. Com toda certeza o objetivo é lutar pela implementação de políticas públicas em defesa dos direitos originários em todos estados, sobretudo aquelas direcionadas a educação, saúde e demarcação de terras.

Referências bibliográficas:

CRUZ, Tereza Almeida. Os processos de lutas e resistências dos povos indígenas do Brasil. In: Revista SURES. Número 9, 2017. Acessar: https://ojs.unila.edu.br/ojs/index.php/sures.

MELO, Ana. A atuação do Conselho Indigenista Missionário na promoção do protagonismo indígena. In. Anais do 30° Simpósio Nacional de História – História e o futuro da educação no Brasil / organizador Márcio Ananias Ferreira Vilela. Recife. 2019.

Texto originalmente publicado na plataforma Afrodiálogos.

Sobre o autor: Lucimar é Graduada em História pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UFRJ), Mestra em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e Doutora em História Social do Brasil pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). É também Pesquisadora do Laboratório de História das Experiências Religiosas do Instituto de História (UFRJ) e do Grupo de Estudos de História da Educação Local (EHELO). Atua ainda como Dirigente do Movimento Negro Unificado; comunicadora social da Plataforma Educacional Afrodiálogos e Professora das redes municipais de ensino de Duque de Caxias e Magé.

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