Texto por: Carlos Alberto Francinelli Junior.
Pensar é, certamente, uma das características que, ao longo da história, tornou o ser humano especial e possibilitou sua hegemonia entre as espécies. Portanto, você pode estar presumindo que o título deste texto é um tanto quanto estranho, visto que, a priori, todo ser humano pensa, e o faz o tempo todo. No entanto existem, por assim dizer, categorias distintas em relação ao pensar. Pensar em que? De que forma? Com que frequência e intensidade? Por que pensar sobre isso e não sobre aquilo? E é a partir destes questionamentos que inicio esta reflexão.
Atualmente estamos vivendo em meio a uma pandemia de transtornos mentais. Dados do COFEN (Conselho Federal de Enfermagem) e do SUS (Sistema único de Saúde) indicam que o total de óbitos por lesões autoprovocadas dobrou nos últimos vinte anos, bem como que a depressão acaba por ser a principal razão de afastamentos por auxílio-doença em trabalhadores (30,6%), sendo que, em segundo lugar, vêm os transtornos de ansiedade (17,9%). Está mais claro do que nunca que, após a Covid-19, o que já estava ruim só acabou piorando.
Não tenho a pretensão de esmiuçar o tema que é, por definição, extremamente complexo, mas sim de indicar o que compreendo ser um fator importante no que se refere ao aumento vertiginoso deste índice: a falta do hábito de pensar.
Antes de mais nada, preciso esclarecer que não me refiro ao pensar sobre qual proteína devo escolher para fazer a janta, ou qual camisa devo vestir, ou mesmo qual time de futebol possui maiores chances de vencer o jogo. O “pensar” ao qual me refiro se trata de uma reflexão mais aprofundada sobre temas centrais, difíceis e intrínsecos da condição humana, como a vida, a morte, a liberdade, o amor, o sofrimento, o sentido da vida, etc.
O filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard (1813-1855) propõe um conceito muito interessante, cerne de uma de suas obras mais fundamentais: o conceito de angústia. Para ele, não há escolha entre o bom e o ruim, visto que naturalmente tendemos a escolher o bom. A escolha só existe quando precisamos decidir entre o ruim e o ruim, entre o bom e o bom, e neste processo reside, dentre outras coisas, a angústia. E esta, com uma autoridade inabalável, nos impõe a reflexão profunda goela abaixo, justamente em um momento nosso de fragilidade. O pensar que eu proponho no título é, em síntese, um “pensar kierkegaardiano”.
Creio que hoje, mais do que ontem, muitas pessoas têm mais dificuldade de lidar com os sofrimentos da vida por não se prepararem para encará-los quando estes vierem a ocorrer, mesmo sabendo que estes sofrimentos são, em sua grande maioria, inevitáveis. Vivemos em um mundo de aparências, onde as redes sociais atuam como a infantaria de uma ditadura da felicidade: um regime autocrático no qual precisamos exorcizar as angústias e sofrimentos impostos pela existência, e não aprender a lidar com eles. Parece que a vida foi reduzida ao Netflix, ao futebol, às fotos nas redes sociais, e a tudo àquilo que te proporciona uma fuga da visceralidade do mundo, como uma busca constante pelo prazer sem qualquer contraindicação.
Pois bem, tudo tem seu preço. Não pensar sobre a morte, por exemplo, te tornará alvo fácil da angústia quando a morte ocorrer. E ela ocorrerá. Não pensar sobre o mundo te tornará alvo fácil da angústia quando este mesmo mundo lhe proporcionar uma perda, seja financeira, física ou emocional. Não pensar sobre uma doença terminal pode, no caso de você adquiri-la, ceifar a ponta do iceberg de esperança que poderia lhe trazer algum sentido maior, caso tivesse refletido seriamente sobre o assunto com antecedência.
Mas você poderia contra argumentar: então você quer que as pessoas pensem, não de forma trivial, mas aprofundada e séria, sobre assuntos que as farão sentir angústia? Mesmo quando tudo ao redor delas estiver bem? Você sente alegria em ver as pessoas sofrendo?
Não se trata do que eu penso. A vida é, em grande medida, sofrimento. Não fui eu que a fiz ser assim. E sendo o sofrimento parte do que é ser humano, precisamos, de forma equilibrada, dedicarmos a ele um pouco do nosso tempo, no sentido não apenas de tentar com que soluções apareçam para os problemas existentes, mas também de criarmos uma casca para sentirmos menos o impacto, especialmente visando os momentos de maior importância, como a morte, o rompimento de um relacionamento, e as grandes frustrações de toda sorte.
Não pensar significa não sofrer agora, mas acumular sofrimento, como em um cartão de crédito com inúmeras faturas atrasadas, e ter que, um dia, pagá-las de uma vez, com juros e correção. É nesse momento que a psique, frágil e acostumada às fugas, desmorona, estilhaça, implode; e como efeito colateral, aparece o que chamamos de transtorno mental, podendo, inclusive, ocorrer o suicídio.
O entretenimento puro, sem a problematização da vida, ou seja, a fuga, é também essencial em um mundo espinhoso e cheio de excessos. As vezes tudo o que precisamos é chegar do trabalho e ligar a TV, ler um romance, ouvir uma música, em suma, não pensar em nada. Porém, quando só fazemos isso, nos colocamos em uma situação de autossaboagem, consciente ou inconsciente, e, por conseguinte, nos tornamos presas fáceis para a angústia por simplesmente não cultivarmos o hábito de pensar.
Sobre o autor: Carlos é psicólogo de formação, especialista em Política e Sociedade, Docência no Ensino Superior, Neuropsicologia e Análise do Comportamento. Atua profissionalmente como psicólogo na Prefeitura Municipal de Maricá (RJ) nas redes de Assistência Social e Educação e exerce as funções de Coordenador do Comitê de Educação e Cultura e de Diretor de Projetos do IEPC – Instituto de Educação, Política e Cidadania. Instagram: @carlos.francinelli
Parabéns Carlos Francinelli pelo artigo. E muito importante o exercício do pensamento e quando fala em questões que não queremos que ocorra, como a morte, doença, desemprego, falência, etc. torna-se mais importante ainda. Creio que não fomos e não estamos preparados e é importante a mobilização de autores e profissionais como você para nos tirar de uma zona de conforto que de conforto não têm nada.